terça-feira, 28 de fevereiro de 2017



Uma Aventura em Londres

7º Capítulo

Os Pubs Ingleses

As Public Houses inglesas, vulgarmente conhecidas como Pubs, foi das coisas que mais me marcou na cidade de Londres. Foi um paixão à primeira vista e viria a ser decisivo na minha vida pessoal e profissional nos anos subsequentes. Estes pubs são normalmente “monumentos” com temas de origem medieval, caracterizados pela madeira escura e pouca luz. Devo ter entrado em dezenas de pubs e todos feitos de madeira maciça e com decorações variadíssimas, quase sempre no tema medieval. Mesmo em frente ao Tredici Mezzo estava o pub da Beauchamp Place. Uma particularidade: Todos ou quase todos os Pubs Londrinos, vá-se lá saber porquê, encerravam das 15h00 às 18h30. Era lei. À noite encerravam, salvo raras exceções onde eram pagas taxas elevadas, o serviço às 23h00. “Last Drinks” era a voz que se ouvia a seguir ao tocar do sino juntinho à hora de encerrar o serviço. No quente Verão de 1983 habituei-me a beber uma half-pint de Stella-Artois ou Guiness no pub em frente, antes de ir para o serviço, às 19h00. Este pub tinha a particularidade de ter todas as mesas construídas sobre a estrutura das máquinas de costura, em ferro fundido. As cadeiras eram, maioritariamente desirmanadas ou desiguais, uma de cada feitio e sem cerimónias, que creio ser uma das características deste tipo de bares ingleses. Os balcões eram, invariavelmente, construídos em madeira de sólido carvalho, polido vezes sem conta e repletos de mini toalhas com publicidade e bases para copos onde, com destreza, os funcionários pousavam as half-pint, pints e outros copos de variadíssimas bebidas.
Uma das bebidas mais populares em Inglaterra, à data, era o Gin. Em Portugal, esta bebida era, maioritariamente, bebida com água tónica e uma rodela de limão, o conhecidíssimo Gin-Tónico, ainda longe da finérrima e pretensiosa moda dos gins com “água mediterrânica captada a vinte sete metros e meio de fundo num ribeiro com obrigatória passagem pelo paralelo 21, a nove graus e meio célsius, tingida com um fruto silvestre de origem nas ilhas formigas, colhido exatamente no dia 30 de Fevereiro, às doze horas e sessenta e um minutos exatos, TMG”. Apercebi-me que era comum em Inglaterra ser bebido quase puro, sobretudo por senhoras inglesas de idade. Na Beauchamp Place existia um bar junto ao Tredici Mezzo onde, diariamente e sempre quando eu saía do trabalho, estava uma idosa senhora a beber o belo do Gin junto às 15h00, sentada ao balcão na companhia de um fumarento cigarro a observar quem passava na movimentada Beauchamp Place. Era, creio, uma bebida de culto, tradicional entre esta faixa e género, tida como a bebida das “velhas inglesas”, ao qual esta idosa senhora fazia jus.
Estes pubs serviam pequenas doses de comida, exposta nas vitrinas em cima dos balcões de madeira. Naquele escaldante verão em que o calor apertou a valer, eram espaços propícios ao encontro de todos os que saíam às 18h00 dos trabalhos e que faziam, de imediato, fila para ir beber um copo assim que as portas abriam às 18h30. Fiquei curioso com algumas situações distintas: As torneiras da “imperial” era manuais, sem gás. A cerveja era extraída do barril pela força do braço que acionava a bomba. Fiquei, também, deslumbrado com os dispensadores de bebidas, com medida automática. Aquelas ampolas que se vêm por baixo das garrafas viradas ao contrário suspensas numa qualquer prateleira, foram para mim uma completa novidade. Outra particularidade interessante. As colas, sumos e sodas saíam de uma pistola na extremidade de uma “bicha” de chuveiro ligada a um saco!!! “Credo em cruz, santo nome de Jesus”. Primeiro que percebesse como é que aquilo funcionava ainda patinei. Mais tarde viria a perceber o funcionamento mas na altura custou a entrar a cabeça. As coisas que uma pessoa via em 1983. Neste périplo pelos pubs lembrava-me constantemente dos meus amigos e no gosto que seria viver em conjunto esta farra de estar em Londres a curtir a vida. Antes de ter vindo para Londres tinha tido um ano interessante em saídas à noite com um grupo numeroso, quer fosse para o Strob’s em Gouveia ou para o Soft Touch no Penedo, passando pelas discotecas da Praia das Maçãs, obrigatoriamente, à boleia no “caixão” do Janeca, no mini do Caixas ou no Peugeot do Pote.
Sentia que o modelo dos pubs era uma fórmula de sucesso. Na nossa zona seria uma completa novidade, associado ao facto de poder trabalhar outro tipo de produtos diferentes, tendo por base o que vira. Na minha cabeça tudo fazia sentido. Existia uma confluência de fatores críticos de sucesso neste modelo de negócio. Durante a fase final do serviço militar obrigatório fiz centenas de desenhos à escala em papel quadriculado com a configuração do espaço, onde tudo ficou mais ou menos delineado. Balcão, W.C.’s, Lareira, Escadas, Mesas, Cozinha, etc. A decoração estava na minha cabeça, registada nos momentos em que conseguia, sofregamente, visitar os pubs londrinos. Sei que, tendo por base o que vi e vivi em Londres, 4 anos mais tarde e logo após o serviço militar obrigatório estava, em conjunto com os meus pais e o meu irmão, a abrir um café-bar com semelhanças ao modelo trazido de Inglaterra, nem mais. Na antiga adega da família Semião, entretanto adquirida pelo meu pai ao José Gomes, viúvo da falecida Joaquina “da Rata”, nasceu o Camacho’s Café Bar, no dia 27 de Maio de 1987. O meu gosto pelas tascas inglesas foi “descarregado” no nº 9 do Largo José dos Sanos Coelho na aldeia de Fontanelas, após um ano de trabalho na sua construção onde de tudo fiz, desde a demolição iniciada no dia 1 de Maio de 1986 quando começámos a remover o recheio, dar serventia ao pedreiro durante todo o processo, até à abertura da porta da frente do Camacho’s, às 18h00 de uma esplendorosa Sexta-feira, um dos melhores dias da minha vida apesar do enorme cansaço, nervoso miudinho e uma brutal espectativa. O resto da história do Camacho’s já uma grande parte de vós presenciou, presumo, mas “são contas de um outro rosário”.
Muito mais estaria para contar, não fossem os trinta e quarto anos de distância apagarem parte das memórias vividas nesse memorável e escaldante Verão de 1983. Após esta experiência única de dois meses regressei já com dezanove anos, cheio de sonhos, ensonado, feliz e contente, no dia 20 de Setembro, com direito a uma receção da família e amigos no aeroporto da Portela.
É, no meu entender, absolutamente necessário cada um de nós passar por uma Londres qualquer, entender o mundo “fora da caixa”, fora da nossa caixa. Abre horizontes, aprendemos a tolerar a diferença, faz-nos sair da nossa área de conforto, ajuda-nos a entender e a conviver com mundos e pessoas diferentes para além de, e aí sim, aprendermos a valorizar o que temos de bom, desde as nossas raízes, clima, família, até ao simples facto de valorizarmos a liberdade de podermos trabalhar e circular sem sermos abordados por polícias desconfiados de que estamos onde não devemos estar como me aconteceu, aos 19 anos de idade, num banco de jardim num solarengo Domingo à tarde, na cidade de Londres.
Conhecer Londres ou outras paragens é absolutamente obrigatório. Obrigatório mesmo. Se for aos 19 anos, melhor ainda…

Obrigado


Carlos Camacho

sábado, 25 de fevereiro de 2017



Uma Aventura em Londres

6º Capítulo

Segurança

Apesar de andar na rua até à meia-noite ou uma da manhã, nunca senti insegurança exceto uma vez, quando um grupo de indianos me mandou uma moeda à cabeça na zona de Gloucester Road e me disse qualquer coisa em indiano que me deixou na mesma. Meti o rabo entre as pernas e passei a dar a volta por outro lado, não fosse a coisa repetir-se e pegar-se tudo à bofetada.
Um dos aspetos menos seguros tinha a ver, imaginem, com o facto de, ao atravessar a rua, os automóveis virem do “lado errado”. Em Portugal aprendi a atravessar a estrada olhando mais para a esquerda do que para a direita. Em Londres era, e ainda é, precisamente o inverso, já que as viaturas circulam pelo lado esquerdo da via. Era estranho aquele fluxo contrário e a atenção permanente ao “lado errado”.
Também em Piccadilly conheci uma fauna distinta: Os Punks. Tememos, por regra, o que é diferente e não compreendemos. Como não sabemos o que dali poderá vir, guardamos alguma distância não vá o diabo tecê-las. No início foi precisamente isso. Sentava-me pasmado de boca aberta a apreciar aqueles grupo com cabelos em crista de cores garridas, maioritariamente vestidos com roupas esquisitas, rasgadas, decoloradas e sujas, blusões de cabedal e botas negras, bebendo constantemente cerveja em latas de meio litro vendidas em pack’s de seis no indiano mais próximo. Tinham poiso certo na escadaria que rodeia a estátua do Cupido, local que qualquer aspirante a turista obrigatoriamente visita na cidade de Londres. Os japoneses já, à data, eram bem conhecidos pelo seu particular gosto em fotografar tudo o que mexe. Os punks eram dos alvos preferidos para estes fotógrafos de ocasião que também eram, reciprocamente, brindados com gestos de cortesia feitos com os dedos médios e olhares ameaçadores. Viram em mim um diferente e sempre que lá ia e os via toleravam-me, até pela minha idade e inocência, embora nunca tivéssemos interagido mais do que olhares de admiração e espanto da minha parte.
Entre a zona de Piccadilly e o Soho, existia a zona do “piolho”, onde os Peep Shows, Cinemas Porno e Casinos Manhosos com máquinas “caça niqueis” tinham presença maioritária. Também por aí me metia nas ruas e ruelas e em todos os sítios entrava, sem qualquer receio nas tardes folgadas, nunca à noite. Não tinha nada para roubar, exceto um velho Timex digital (daqueles chatos como a potassa que incomodavam tudo e todos nas salas de cinema) oferecido num qualquer Natal ou Aniversário. Passar às portas de todos estes lugares era parecido com o assédio dos funcionários dos restaurantes da antiga Feira Popular de Lisboa quando passávamos junto à sua entrada. Quase que nos arrastavam porta dentro. Passei longas horas a ver as máquinas que empurravam moedas, Slot Machines e máquinas de corridas de cavalos cheias de cores e sons peculiares. Era tudo novo para mim.
Bem perto de Piccadilly fica o Soho ou Bairro Chinês. Esta área é caracterizada por uma população maioritariamente chinesa com residências, comércio, serviços e restauração chinesa. É um mundo à parte, isolado e fechado sobre si próprio. É um país dentro de um outro país. Adorava passear pelas ruas e ruelas do bairro, visitando as lojas e, quando havia dinheiro, petiscar numa qualquer banca ou casa de comida desta população metida com ela própria. À semelhança do que acontece desde há uns anos em Portugal, Londres teve uma população chinesa mais presente desde mais cedo até por questões coloniais, nomeadamente pela presença inglesa desde há centenas de anos em Hong-Kong. Os cheiros são particulares, característicos, pujantes e omnipresentes. Vinte e dois anos depois senti os mesmos odores em Hong-Kong e na China continental, fruto de uma gastronomia própria e particular, recheada de produtos e condimentos próprios, onde se come tudo o que tem quatro pernas, exceto uma mesa de cozinha, dizem por graça na zona de Guangdong, província no sul da China contígua a Hong-Kong.
Na Beauchamp Place conheci o Carlos, filho de um guitarrista do Restaurante Fado vindo da zona do Laranjeiro e que andava muitas vezes por lá juntamente com o Ciro, sobrinho do Ciro da Pizzaria Pomodoro. Eram os dois meio passados. Numa noite de folga combinámos ir a uma discoteca perto de Portobello Road. O Carlos e o Ciro eram mais velhos do que eu cerca de meia dúzia de anos e tinham outro “andamento”. Nessa saída noturna percebi algo mais da noite Londrina, em sítios onde a “barra era mais pesada” e desmarquei-me por receio, depois dumas “raviengas” falhadas para entrar na discoteca sem pagar. Nunca senti realmente insegurança embora estivesse numa das maiores cidades do mundo. Filho de muita mãe aqui desaguou e continua a desaguar. Via-se de tudo.
Depois da aventura lá regressava, seguro, ao Imperial College, no 66 de Evelyn Gardens, perto do Royal Brompton Hospital.


Continua…  

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017


Uma Aventura em Londres
5º Capítulo
A Gula
Saía do restaurante às 24h00, aproximadamente. Muitas das vezes não me dava ao trabalho de ir apanhar o metro à estação de Knightsbridge junto ao Harrods e fazia os dois quilómetros a pé passando, quando havia dinheiro, por um Kentucky Fried Chichen aberto junto à estação de metro de Gloucester Road. Aquele frango estaladiço, suculento, gorduroso e acabado de fritar acompanhado de “chips” marchava que nem ginjas, tipo ceia da meia-noite. Quando andava na rua tinha sempre fome. Os cheiros, a novidade, a voracidade juvenil e principalmente a gula acompanhavam-me, religiosamente, para todo o lado. Para mim o fast-food era um conceito totalmente novo, uma completa novidade. Nunca em tal tinha ouvido falar. Era tal a novidade que enquanto estive em Londres devo ter gasto mais de 50% do meu orçamento em comida. Comida precisava-se. No restaurante almoçava e jantava “Pasta”. “Primo piatto” todos os dias. Aprendi a gostar de “pasta” no Tredici Mezzo. Aprendi a cozinhar massa nessa altura olhando, curioso, para a forma como coziam e salteavam a massa no fogão de seis bicos numa frigideira habilmente manuseada por um dos Manolos da cozinha, quer fosse com manjericão, tomate, natas, cogumelos ou qualquer outro ingrediente fresco entregue diariamente na cozinha do restaurante. Ainda hoje faço, regularmente e em casa, massa com base na memória visual obtida nessa fabulosa cozinha do Tredici Mezzo. Em frente tinha as pizas da Pizzaria Pomodoro. Muitas foram feitas pelo português de serviço à Pizzaria Pomodoro, o João Neves. Também aí ganhei um verdadeiro interesse pela confeção e degustação das pizas, até aos dias de hoje. Graças a esses dois meses de ouro em Londres, ainda hoje faço pizas em forno a lenha com todos os requisitos desenvolvidos ao longo de mais de 30 anos de pura curiosidade começada no ano de 1983 na cidade de Londres, a ver o João ou outro “pizzaiollo” na Pizzaria Pomodoro. O difícil mesmo era vencer a gula desenfreada deste esfaimado animal bem criado ao longo de 18 anos na quinta do Domingos Tanoeiro e da Gertrudes Vitorino. No meu baú de memórias degustativas e olfativas um dos primeiros lugares é ocupado por uma Hamburgueria chamada Julianas, mesmo em frente ao Harrods, na Brompton Road, sítio encantado e primeira paragem obrigatória após a saída do trabalho às 15h00. Lá matava a larica quando o almoço já lá ia há mais de três horas. Nos anos 80, que me lembre, Londres ainda não tinha a “Fina Flôr do Entulho do Junk Food Mundial”, o Mac Donalds de seu nome, importada dos States qual praga de erva daninha plantada em todos os sítios que cheire a dinheiro. Este “Escalrracho” da comida da treta não me apareceu à frente porque se aparecesse também marchava, provavelmente com muita satisfação. Em Inglaterra comi o melhor e o pior hamburguer da minha vida. Como depressa ganhei aversão à escola, passei a ter mais tempo para vadiar, calcorreando meia Londres a pé ou até onde o metro me levava. Um dos destinos frequentes era Piccadilly Circus, bem no centro da cidade. Aí reinava um dos meus sítios favoritos em Londres: O Wimpy. O Wimpy de Piccadilly foi onde comi o melhor hambúrguer da minha vida. Vinte e três anos depois, em Agosto de 2007, reencontrei este “velho amigo” na autoestrada M25, a caminho de Sevenoaks, Kent, vindo do aeroporto de Gatwick. Virei-me triunfante para o meu filho e disse-lhe: “Estes gajos têm os melhores hambúrgueres que já comi até hoje”, disse-lhe com plena convicção e uma certeza inabalável. Dirigimo-nos com toda a pica degustar este paladoso e afamado pitéu com lugar no meu baú de memórias. Criei uma espectativas brutais no Zeca. Descrevi-lhe o afamado restaurante com todos os detalhes enquanto as minhas memórias afloravam à meca dos hambúrgueres de Piccadilly, num misto de saudade e nostalgia. Se bem ouviu melhor comeu dois “cheeses” enquanto o diabo esfregou um olho. No que toca a mim, dei duas dentadas e não consegui chegar ao fim do meu hambúrguer. Intragável. O pior hambúrguer da minha vida. O modo de preparação era o mesmo. Os hambúrgueres eram os mesmos. Os acompanhamentos eram os mesmos. A única coisa que mudou fui eu. A minha idade, a fome, o palato e a novidade que era estar em Londres, livre que nem um passarinho cuja preocupação era apenas e simplesmente lembrar-me de tudo para poder contar com detalhe aos meus amigos em Portugal, chegar ao final da noite com o estomago aconchegado e uma enorme pica de começar tudo no dia seguinte como se fosse o primeiro, preferencialmente a descobrir e a andar mais, e mais, e mais… . As voltas que a vida dá, as voltas que nós, pouco a pouco e sem nos apercebermos, damos. Ainda bem que tive oportunidade de conhecer Londres aos 18 anos. Todos deveríamos conhecer uma “Londres” aos 18 anos.


Continua… 
Uma aventura em Londres
4º Capítulo
Saudades
Trabalhava das 10h00 às 15h00 e das 18h00 até fechar, com uma folga semanal e meio dia de Domingo. Abria só às 19h00. Lá equilibrei o “deve e haver” e comecei a ganhar asas. Matriculei-me numa escola de inglês para dar corpo ao motivo que a Londres me levara. Paguei a inscrição na escola, mais uma semana adiantado e fui lá dois dias. Bolas! Nem me lembro onde era a escola tal foi a pressa com que me baldei. As aulas valiam o que valiam, no meu entender, à data. Não estava disposto a estar parado num local durante 2 ou três horas diárias, sacrificando a descoberta de uma cidade à mão de semear, sacrificando o deslumbramento de poder estar a descobrir pessoas e locais completamente novos para mim. Habituei-me a caminhar em Londres.
No dia 27 de Julho subia a Harrington Road a caminho do trabalho quando, ao passar por uma banca de jornais encaro com uma notícia de Lisboa: “Terroristas Assaltam Embaixada da Turquia em Lisboa”, noticiavam vários jornais na primeira página, entre eles o Correio da Manhã português. Epá!!! Para um português adolescente aprendiz de imigrante clandestino em Londres, Lisboa assumir este protagonismo internacional era para mim motivo de indisfarçável orgulho, que fiz questão de mostrar ao chegar ao restaurante. Só não comprei o jornal porque ainda estava na fase de desabono financeiro. Nesse dia senti-me menos anónimo e com a autoestima mais em alta. Afinal Lisboa e Portugal também eram notícia e não eram assim tão desconhecidos em Inglaterra e no mundo… J
As coisas que se podem vivenciar aos 18 anos. A emoção à flor da pele. Já depois da saudade começar a fazer mossa, dei de caras com um poster promocional das Azenhas do Mar, na foto típica da cascata de casas, piscina e mar, na montra de uma agência de viagens na estação de metro em Knightsbridge, junto ao Harrods, Parei estarrecido, imóvel. Começaram-me os olhos a ficar encharcados de lágrimas enquanto olhava em volta e tentava dizer às pessoas “eu sou daqui perto”, “moro um pouco mais acima”, “já tomei banho naquela piscina”. Sem sucesso, já que as palavras eram barradas pelo choro provocado pela emocionada e intensa saudade da santa terrinha. Estar longe de casa traz estas coisas. Estar longe de casa por um tempo anormal, traz-nos vivências intensíssimas, levadas ao limite pela fragilidade emocional. Vive-se tudo com muito mais convicção e determinação. Dá-se e recebe-se mais. Estamos a viver sem “rede”, sem suporte. Somos mais “nós”. Marca-nos!!!  

Por volta da data dos meus anos, mudei de quarto. Deixei a zona de Gloucester Road e andei uns quarteirões para baixo, Evelyn Gardens, numa espécie de camarata para estudantes do Imperial College, mais barato e com melhores condições, embora com quarto duplo. Começou bem. O recepcionista enganou-se e colocou-me num quarto duplo feminino, pelo que quando cheguei à tarde do dia da folga tinha uma chave e a mala aviada para outro poiso mais adequado. Realmente estranhei quando, à tarde, fui lá deixar os meus parcos haveres e ter visto uns sapatos de salto alto vermelho vivo, bem como um vestido ramado pendurado num cabide na porta de madeira do guarda-vestidos.  
No dia da mudança de quarto completava 19 anos. 22 de Agosto de 1983. Convidei o Sr. Dino, mais dois colegas e fomos cear à Pizzeria Pomodoro, mesmo em frente ao Tredici Mezzo. Como bom dia de comemoração, acabei a noite a beber goles pelo gargalo de uma pujante litrada de Bell’s Scotch Whisky, aterrando num banco de jardim algures perto de Evelyn Gardens, bêbado que nem um cacho e sem encontrar o Imperial College, a minha nova guarida. Algumas horas depois, com um menor teor alcoólico no sangue e uma monumental ressaca, lá consegui atinar com o quarto, tomar um duche e retomar o serviço no restaurante.
Incha aí, marreta. O dia 23 de Agosto de 1983 foi um dos dias mais difíceis em Londres. Uma monumental ressaca e ter que aguentar firme e hirto aquela terça-feira de trabalho foi obra. Aguenta que é serviço!
Perto da meia-noite lá fui, cabisbaixo, mais morto que vivo a pé até à camarata do Imperial College, em Evelyn Gardens, a minha nova guarida por mais umas semanas.


Continua…
Uma Aventura em Londres
3º Capítulo
O Restaurante
Em Londres, e pela mão dos colegas italianos, fiquei a saber que “Portoghese” em Itália é sinónimo de não-pagador, borlista. “Sono 40.000 paganti e 2000 Portoghesi”, anunciava ao microfone o “speaker” de serviço no jogo Roma-Inter. Remonta a 1513 quando o Papa Leão X convidou rei D. Manuel l a visitar Roma, permitindo que toda a comitiva não pagasse determinados produtos e serviços aquando da sua visita. Ao que consta, alguns italianos fizeram-se passar por portugueses e usufruiram da benesse, dando uma outra dimensão à “borla”. A partir dessa data, todos os borlistas passaram a ser chamados de “Portoghese”, chegando aos dias de hoje.
Se o intuito era aprender inglês, comecei pelo italiano. “Via la cinque” dizia-me o Carlo no seu italiano de Milão. Fumava Gitanes sem filtro para impressionar as “Regazze” dando ares de “macho man”, compondo ao espelho do hall a sua cabeleira de caracóis, bem à moda do início dos anos 80. Espero que os Gitanes sem filtro não lhe tenham causado uma doença pulmonar… . Na cozinha mandavam os Manolos. Rey e Camaño. À Segunda, Terça e Quarta o Manolo Rey servia “Pasta”. À Quinta, Sexta e Sábado o Manolo Camaño “Pasta” servia. Eram uma dupla imbatível a trabalhar no fogão de seis bicos, onde a frigideira debitava “Fettuccine al Salmone” e outras iguarias italianas de lamber os dedos. Um deles gabava-se que quando era novo descrevia uma circunferência completa assente no seu próprio corpo, na horizontal, tendo um eixo natural a meio do corpo, objecto viril, firme e hirto, que nem o próprio peso vergava, tal era a pujança do “animal”, segundo ele. Também o Simone, siciliano de Palermo, corrigia-me permanentemente por eu lhe chamar “chimone”, provocando uma entoação semelhante a “macaco”, em siciliano. Na minha saga linguística, a primeira coisa que os colegas me ensinaram foi a praguejar com direito a explicadores privados tal era a intensidade dos mimos verbais a mim dirigidos, quer estivesse ou não à altura das tarefas indicadas. Fazia parte da receção ao caloiro do restaurante. Já o Sr. Dino, com a sua calma habitual, teve toda a paciência comigo e ensinou-me a fazer Cappuccinos bem caprichados, com a habitual espuma de leite polvilhada com chocolate. Depressa passei a mencionar de cor as mães e mulheres dos colegas, aludindo em italiano também regularmente às suas virtuais crescenças ósseas na testa, ornamento imaginário imprescindível neste “metier” londrino. Também as pendurezas naturais dos homens e mulheres eram regularmente chamadas a público nas “conversas da treta” e “piadas de caserna”. Aprendi a falar com as mãos e a praguejar em italiano. Só depois de ler um livro do Antonhy Bourdain sobre o “metier” das cozinhas é que me apercebi das semelhanças com aquela cozinha em 1983. Cozinha é cozinha. No Tredici Mezzo ou num qualquer restaurante “Inn” em Nova Iorque ou Paris. A fauna é a mesma, o cheiro é o mesmo e os empregados têm as mesmas pancas, vícios e virtudes de todos os outros. Excelentes seres humanos e colegas. Um detalhe. A comida servida no restaurante era de elevada qualidade, bem como o serviço ao cliente. O Sr. Dino era, de facto, um excelente “manager” e mantinha o restaurante com um elevado nível de clientes, quer na quantidade como na qualidade. Foi aí que vi pela primeira vez um piloto de Fórmula 1 ao vivo e a cores. Até essa data só nas páginas do Auto Sport de onde recortava fotos dos pilotos e respetivos carros. No meu imaginário juvenil dar de caras com um piloto de Fórmula 1 era o mesmo que me sair a Taluda do Natal, duas vezes seguidas. Mas aconteceu. O meu embaraço e espanto impediram-me de caçar um autógrafo ao René Arnoux, que à data fazia equipa com Patrick Tambay na famosíssima Ferrari, quando foi jantar ao Tredici Mezzo num atarefado Domingo à noite desse memorável Verão de 1983. Nessa noite fui cabisbaixo para o quarto só de pensar que tinha desperdiçado uma oportunidade única, a oportunidade de mostrar aos meus amigos portugueses, quando voltasse para Portugal, um autógrafo caçado a um dos maiores pilotos de Fórmula 1 à data.
Tenho a certeza absoluta que aquele Verão teve uma importância decisiva na minha vida pessoal e profissional. A minha vida não teria sido a mesma sem aqueles dois meses de ouro a conviver com um mundo inimaginável para um saloio de gema nascido em 1964, no nº 3 da Rua do Rio, Fontanelas, S. João das Lampas, Sintra, Portugal. A primeira saída da parvónia e pimba: Londres.
Deslumbramento total. Conhecer mundo é bom. Conhecer mundo com 18 anos é deslumbramento e descoberta.

Continua…



Uma Aventura em Londres
2º Capítulo
Desbravar terreno
Após o embate inicial e aculturação obrigatória, lá me consegui instalar. Apesar de caduco e velho, o quarto dava para dormir as horitas necessárias. O W.C. era comum a dois andares e tinha que descer a pesada escada de mogno escuro com alguma contenção para não acordar os menos madrugadores, já que a escada era uma autêntica sinfonia.. Água quente nem sempre e a correr um fiozito que mal dava para enxaguar os dentes e lavar as partes. No dia 18, segunda-feira, fui apresentado ao staff do Tredeci Mezzo. Fui substituir o Zé Pinheiro, do Porto, que vinha de férias para Portugal ao fim de um ano sabático a cumprir calendário para entrar na universidade, segundo ele. Deu-me umas dicas e peguei ao serviço. Camisinha branca, calça escura e sapatinho engraxado, como manda a lei. Iniciei naquele dia o gosto pela “Pasta”, em português: Massa. Ao almoço e ao jantar. Ao almoço e ao jantar. Ao almoço e ao jantar… . Como bom aprendiz, fiz o que me mandaram fazer. Ajudar na matinal limpeza geral, lavar pratos, chávenas e pires, servir Cappuccinos, cafés expresso, refrigerantes e garrafas de vinho branco Frascatti e tinto Valpolicella, bem como doses de manteiga e “grissini croccanti”, tudo no nº 13, cave, da Beauchamp Place, em Knigthsbridge, centro do mundo para um português adolescente aprendiz de emigrante clandestino, no restaurante italiano Tredici Mezzo, de seu nome. Meio copeiro, meio barista, nem mais, já está! Parabéns ao arrematante.
Obrigado Sr. Dino e D. Maria do Rosário pelo cuidado, atenção e paciência que tiveram comigo ao longo da minha epopeia londrina. Que mais podia eu querer? Receberam-me e ainda era pago! Jamais poderei esquecer a atenção e generosidade.
Dois cozinheiros espanhóis, dois ajudantes (um catalão de Barcelona e uma brasileira do Rio) um português do Porto de saída e três italianos no atendimento às mesas, compunham o “staff” deste bem frequentado restaurante no número treze, cave, mesmo em frente à famosa Pizzaria Pomodoro e vizinho do finérrimo e muito “inn” “San Lorenzo, Osteria and Classic Italian Food”.
Nesse mesmo dia comecei a desbravar as redondezas. Verifiquei com surpresa que, dos poucos restaurantes portugueses que existiam em Londres, dois eram na Beauchamp Place. O “Caravela” e o “Fado”. Também um Pub mesmo em frente ficou logo na mira. Ao passar junto à porta do Ciro’s Pizzaria Pomodoro fiquei de imediato fã, só pelo cheiroso aroma que subia pelas inclinadas escadas de acesso ao restaurante situado na cave. Lá conheci um Português, João Neves. Tinha ido para Londres tal como eu, numa de aventura para conhecer mundo. Algum tempo depois vi o João num anúncio televisivo da Rexina, após ter sido atleta olímpico no judo e ganhar visibilidade mediática. Essa Pizzaria foi um dos meus principais poisos na Beauchamp Place. As pizzas, o contacto com o João e a deslumbrante vista que uma empregada de mesa australiana, com um decote arejado, proporcionava quando se debruçava na mesa a anotar o pedido. Numa primeira ida à pizzaria e não conseguindo dizer com os requisitos necessários a palavra “Menu”, tive direito a explicação detalhada de como o fazer pela zelosa funcionária. Como não tinha pressa e a professora fazia questão de zelar pela língua inglesa, no dia seguinte lá desci as escadas para nova explicação enquanto, inclinada, tomava nota do pedido no bloco assente no coçado tampo de madeira escura. A Pizzaria pertencia ao Ciro Orsini, italiano imigrado em Inglaterra, tal como milhares de compatriotas que levaram a comida italiana à capital inglesa. Já à data o Ciro era um personagem “sui generis”. Transformou, aparentemente, uma simples pizzaria num bem sucedido negócio além fronteiras, com pontos de venda nos Emirados Àrabes.  
À noite, quando não ia de metro para casa, descia a Cromwell Road em direcção a Earls Court, passando ao lado de casinos chineses instalados nas caves destes distintos prédios de zona “bem”. À data já Londres era muito movimentada durante a noite, ouvindo-se regularmente os Rover 3000 da Polícia londrina passarem “a fundo” em plena acção. Nesse quente Verão de 1983, nada melhor do que chinelar o sapatito raso no gasto passeio em frente ao Museu de História Natural, bebendo a noite londrina e o cheiro dos plátanos que bordejavam a rua.
A vida traz-nos algumas coisa boas
Continua...
Uma Aventura em Londres
1º Capítulo
Verão de 1983
Chegara o dia 17 de Julho de 1983. Estava a ganhar asas e a querer aventura. Após uma primeira incursão pela língua inglesa no Instituto Britânico ao Príncipe Real, achei que o futuro deveria ser mais radical e rumar à origem da língua: Inglaterra. Por conhecimentos familiares, consegui ir com trabalho apalavrado. Tirei o Passaporte e comprei um bilhete de avião. Pela primeira vez vou andar de avião. A estreia está prevista na British Airways, voo 435 para Gatwick, a meia hora de comboio da estação de Victoria, bem no centro de Londres. Convenci os meus pais que o futuro estava em aprender inglês num verão escaldante da capital britânica, refrescado com latas de Stella Artois e Guiness a 47 pence cada. Financiaram-me a viagem, parte da estadia, umas dúzias de “Pints” e uma ida e volta para o aeroporto da Portela. À data foi muito, já que não era nada habitual este tipo de habilidades para miúdos de 18 anos nascidos e criados na aldeia de Fontanelas. O estrangeiro era algo muito distante e inacessível, a menos que o objectivo fosse a emigração por longos períodos de tempo. Viajar hoje para Londres é mais ou menos banal e pode-se ir almoçar ao Harrods num qualquer Sábado do ano, regressando à noite sem qualquer sobressalto. À data, Londres era quase como ir hoje à Papua Nova Guiné, sem telecomunicações e apenas com direito a raros telefonemas e carta escrita que demorava quinze dias a chegar ao destino. Fax, email, telemóvel, internet, Skype, etc, era tecnologia por inventar naquele longínquo mas inesquecível Verão de 1983. À data ainda Portugal estava longe de conseguir que pessoas e bens pudessem transitar sem problemas pelas fronteiras de Schengen pelo que, à entrada do Reino Unido, fui analisado à lupa pelos agentes do SEF local. Mal me desenrascava com o inglês e em frente ao inspector da alfândega muito menos. A pretexto de ir passar dois meses de férias em casa de familiares e matricular-me numa escola de inglês, num discurso já ensaiado, inquiriram-me se tinha dinheiro para pagar a escola e fazer face às despesas nesse tempo todo. Saquei de 500 libras do bolso e mostrei-lhes, triunfante, já que não estava ali para brincar. Só não lhe disse que 100 eram minhas e 400 emprestadas pelo Sr. Dino, dono do restaurante para onde ia trabalhar e com quem fiz a viagem. Entrei em Inglaterra. Estava, finalmente, clandestino.
Toca de procurar quarto, depois de ficar uma noite em casa dos patrões. Desaguei, após afincada procura ajudado pelo catalão da cozinha, num terceiro andar sem elevador de um prédio vitoriano de Gloucester Road, junto a uma igreja de que nunca soube o nome. Depressa me instalei com a malita de viagem, depois de abrir mão de 50 libras de caução e 30 de renda para a semana que entrava. Dos 100 já só restavam uns trocos, já que bilhete de comboio, qualquer coisa que comi na rua e uma toalha de banho que me tinha esquecido de levar, levaram praticamente o resto. Como não tinha mais dinheiro, creme da barba e pincel não levei, restou-me espalhar a pasta de dentes à mão para não fazer a barba a seco. Ainda sinto o fresco cortante na face mentolada da pasta de dentes Colgate à saída de casa nas manhãs londrinas a caminho da Beauchamp Place, Knightsbridge.

Já tinha entrado no “Red Line” financeiro, mas como foi preciso comprar o passe semanal fiquei logo em dívida com o Sr. Dino que me abonou algumas libras para fazer face a despesas diárias e comprar uns macitos de Marlboro de 17 cigarros, à data populares em Londres nas máquinas self-service e nas lojas 24/24 de indianos. Uma libra valia, à data, 180 escudos (90 cêntimos €), mais ou menos. Um macito de Português Suave com filtro custava, à data, cerca de 40 paus (20 cêntimos €). Nunca tinha convivido com uma moeda tão “alta”, o que me veio a ser fatal na gestão do parco soldo semanal. Andava sempre “teso”. Só a partir da terceira semana consegui ter dinheiro para enviar postais e cartas para familiares e amigos.

continua...